segunda-feira, 7 de março de 2011

A dor atrás da burca

No dia em que se comemora " Dia Internacional da Mulher" queremos propor uma reflexão sobre a  opressão e dilemas que são vividos por mulheres no Afeganistão.
Lendo o texto da resvista Veja (Edição 2165 / 19 de maio de 2010) abaixo transcrito, pense o que de fato significa  ser MELHER e  ter LIBERDADE.





"No caminho do aeroporto para o centro da cidade, as barreiras de soldados armados com anacrônicos fuzis Kalashnikov e os muros de concreto erguidos diante das embaixadas lembram a todo instante que a desgraça está à espreita. Só nos dois primeiros meses do ano, a capital do Afeganistão foi alvo de duas séries de atentados cometidos por homens-bomba, nas quais 21 pessoas morreram. O país foi apontado, no último relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), como o lugar mais perigoso do mundo para gerar uma criança. Mas pior do que vir à luz é nascer mulher no Afeganistão.
Nove anos depois da queda do regime do Talibã, as afegãs continuam pagando a parte mais pesada da conta do fundamentalismo religioso. Nas ruas, a maioria ainda usa a burca, a roupa que cobre o corpo feminino dos pés à cabeça e que era uniforme compulsório no tempo da milícia talibã. Embora as escolas para mulheres não sejam mais proibidas, as estudantes representam uma porcentagem ínfima da população feminina e mais da metade das afegãs ainda se casa antes dos 16 anos de idade – salvo raríssimas exceções, com homens escolhidos por sua família. Sob o totalitarismo medieval do Talibã, as que saíam às ruas desacompanhadas do marido ou de um parente do sexo masculino eram castigadas a chibatadas. Hoje, a proibição não existe mais, mas as afegãs continuam ausentes da paisagem. Para elas, qualquer lugar onde haja aglomeração masculina é considerado impróprio, o que inclui mercados, feiras, cinemas e parques. A segregação sexista faz com que até nos saguões dos aeroportos e nas festas de casamento exista um "setor feminino" – só no primeiro caso não formalmente delimitado. Nas bodas em que as mulheres comparecem maquiadas e com belos vestidos, quase sempre há dois salões – um para eles e outro para elas. Poucas se arriscam a desafiar as proibições sociais. A aplicação de castigos físicos a mulheres de "mau comportamento" continua a ser vista como um dever e um direito da família. Uma pesquisa feita em 2008 com 4 700 afegãs mostrou que 87% já tinham sido vítimas de espancamentos ou abusos sexuais e psicológicos – em 82% dos casos, infligidos por parentes. O Afeganistão livrou-se do jugo do Talibã, mas não conseguiu varrer o obscurantismo religioso que ele ajudou a disseminar. A interpretação radical e misógina dos princípios do Islã é a principal causa da tragédia das mulheres afegãs.
A prática da autoimolação é um dos sinais mais cruéis de sua magnitude. Entre 2008 e 2009, ao menos oitenta afegãs tentaram o suicídio ateando fogo ao corpo. Na província de Herat, a oeste de Cabul, a incidência desse tipo de episódio é tão alta que o principal hospital da região montou uma unidade para atender exclusivamente a casos assim. Quando a reportagem de VEJA visitou o lugar, havia três mulheres internadas por queimaduras autoinfligidas. Todas tinham menos de 26 anos e eram analfabetas. No Afeganistão, apenas 15% das mulheres com mais de 15 anos sabem ler e escrever. Rahime, de 25 anos, deu entrada no hospital com 35% do corpo queimado. Ela disse que tentou se imolar porque "estava cansada de viver". Contou que se casou aos 10 anos de idade e, desde então, engravidou seis vezes (sofreu três abortos espontâneos). A mãe estava com ela no hospital. Indagada sobre as razões que a fizeram permitir que a filha se casasse tão cedo, explicou que, na verdade, não a deu em casamento, mas foi obrigada a vendê-la. O marido era lavrador em uma plantação de ópio e não conseguia sustentar a família, de oito filhos. "Ficávamos três ou quatro noites sem ter o que comer", afirmou ela. Rahime foi entregue a um comerciante da região em troca de 200 000 afeganes, o equivalente a 4 300 dólares, divididos em dez pagamentos. O comerciante, hoje seu marido, é "bem mais velho" do que ela, mas nem a jovem nem a mãe souberam precisar quanto.
Para atear fogo em si próprias, as mulheres costumam recorrer a óleo de cozinha ou ao querosene usado para acender lampiões. Apenas 6% das casas na zona rural do país têm eletricidade. O óleo provoca queimaduras mais graves do que o querosene, porque gruda na pele, o que faz com que o calor permaneça por mais tempo em contato com o corpo. Tanto o óleo quanto o querosene superam a água fervente, já que a fumaça que produzem pode causar, além de intoxicação, queimaduras internas. A maior parte das mulheres que tentam imolar-se não morre na hora, mas depois de alguns dias, vítima de falência de múltiplos órgãos resultante da perda de água. Rahime tinha o rosto e o corpo enfaixados. Ela verteu querosene sobre a cabeça, e não sobre o peito, como ocorre com mais frequência. Enquanto falava, uma policial se aproximou da sua cama para interrogá-la sobre os motivos da tentativa de suicídio. A investigadora Zulaikha Qambari trabalha há três anos no Departamento para Solução de Conflitos Familiares da Delegacia de Herat. Rahime disse a ela que decidiu atear fogo ao corpo porque a sogra passou a maltratá-la desde que o seu marido foi trabalhar no Irã. As duas mulheres deitadas ao lado da jovem também culparam alguém da família pelo ato extremo: uma diz que decidiu se matar depois de apanhar do padrasto do marido e outra afirmou que tomou a decisão por causa de uma briga com a cunhada em torno de um cosmético que havia ganho de presente. A policial Zulaikha afirmou estar habituada a ouvir justificativas como essas. "Algumas mulheres demoram para contar a história inteira, que muitas vezes inclui estupros e espancamentos sistemáticos. Outras nem são capazes de explicar por que fizeram aquilo. Apenas dizem que não querem mais viver." Quando a reportagem se preparava para deixar o hospital, deparou com a chegada de uma quarta vítima. Ruquia, de 15 anos, proveniente da província vizinha de Badghis. Ela apresentava 45% do corpo queimado. A mãe disse aos médicos que a filha havia se acidentado fazendo chá. "Mentira", sussurrou o enfermeiro. "Sinta o cheiro de querosene que exala do corpo dela." A menina estava casada havia um ano.
A quantidade de mulheres que tentam imolar-se no Afeganistão atingiu o auge em 2004, quando só o hospital de Herat recebeu 350. Desde então, o número de vítimas tem-se mantido estável – e surpreendentemente mais alto do que o registrado no tempo em que o Talibã mandava no país. "Naquele período, quase não recebíamos casos como esses", afirma o diretor da unidade de queimados, Hamayoon Azizi, que há doze anos trabalha no hospital. Isso não quer dizer que as mulheres tinham menos motivos para sofrer no passado. Durante os cinco anos em que esteve no poder, o Talibã proibiu-as de trabalhar e de estudar. Instituiu a pena de apedrejamento para adúlteras e baniu qualquer tipo de entretenimento, incluindo cinema, televisão e até a brincadeira de empinar pipas, tradicional no país. A música também foi vetada, e quem fosse achado com uma fita cassete no carro era preso. Para o médico Azizi, o aumento no número de casos de autoimolação em relação àquele período é fruto do contato que muitas afegãs tiveram com o Irã, onde a prática está disseminada há mais tempo. O Irã faz fronteira com a província de Herat e, com o Paquistão, foi escolhido como refúgio por milhões de afegãos que deixaram o seu país no fim dos anos 90. Com a queda do Talibã, esses refugiados começaram a retornar ao Afeganistão – trazendo, na hipótese do médico, o "know-how" da autoimolação.

A engenheira civil Sabzina Hasanzada foi uma das muitas mulheres que abandonaram o Afeganistão para fugir do Talibã. Ela ficou viúva aos 31 anos e perdeu seu único irmão na guerra civil que antecedeu a vitória da milícia. Sem um homem para acompanhá-la na rua, como exigiam os radicais, ela tinha dificuldades até mesmo para abastecer a despensa da casa em que morava com as duas filhas. Resolveu mudar-se para o Paquistão e só voltou quando o regime caiu, em 2001. Hoje, está de volta ao seu trabalho no Ministério da Energia, onde ganha o equivalente a 400 dólares por mês. Mora na área antiga de Cabul, próxima ao mercado principal, aonde só vai de burca, embora deteste a roupa. "Evita que os vizinhos façam fofocas e que os homens cheguem perto", disse a VEJA. No mercado, a frequência é predominantemente masculina. É costume no país os homens fazerem as compras domésticas, orientados pelas mulheres, cujo lugar, supõem, é dentro de casa. Além disso, fica nesse mercado a maior feira de pássaros da capital, e criá-los para rinhas é um dos passatempos masculinos. Na verdade, qualquer briga é um passatempo para os afegãos. Há lutas organizadas de faisões, cães e camelos. Até as pipas brigam pela supremacia no céu, o que é compreensível num país que se vangloria da valentia de seus guerreiros e se orgulha de exibir na sua história a expulsão de duas potências invasoras, a britânica e a russa.
Sabzina, que se formou na Universidade de Cabul, faz questão de que as filhas, Frieshta, de 15 anos, e Silsila, de 12, frequentem a escola. Embora no ano passado 102 colégios para meninas do país tenham sido alvo de ataques atribuídos a membros do Talibã contrários à educação para mulheres, as escolas da capital eram consideradas seguras. Isso mudou no último dia 27, quando 22 meninas e três professoras foram hospitalizadas depois de ter sido expostas a um gás não identificado e caído inconscientes na sala de aula. Segundo a polícia, o ataque seguiu o padrão de três outros atribuídos ao Talibã, ocorridos pouco antes na província de Kunduz, no extremo norte do país. Os episódios reforçaram a sensação de que nuvens escuras continuam a pairar sobre o Afeganistão – mais precisamente, sobre a cabeça das mulheres do Afeganistão. Outros indícios recentes foram a aprovação de uma lei que obriga a esposa xiita a fazer sexo com seu marido sempre que ele exigir, sob pena de ser privada de sustento por ele, e a série de ataques a mulheres parlamentares. A ex-deputada Malalai Joya teve o mandato cassado ao defender
a secularização do estado afegão e Fawzia Koofi sofreu um atentado a tiros, em março, depois de ter recebido seguidas ameaças de morte por criticar a aprovação do chamado "estupro marital" para a minoria xiita.
Analistas da situação política afegã acreditam que a "talibanização" do país é fruto principalmente da aliança firmada pelo presidente Hamid Karzai com lideranças de partidos religiosos fundamentalistas nas eleições do ano passado – um apoio que ele agora precisa retribuir. O governo Karzai é fraco e corrupto. No ranking da Transparência Internacional dos países mais honestos do mundo, o Afeganistão era, até 2005, o 117º entre 180. Na última classificação, em 2009, caiu para o 179º posto. A corrupção lá chega a ser palpável. No bairro mais rico de Cabul, Sherpur, o conjunto de casas originalmente pertencentes aos "barões do ópio" (o Afeganistão produz 92% da substância usada no mundo para a fabricação de heroína) foi rebatizado de "Char-pur" – algo como "lugar de saqueadores". Isso porque, desde o início do governo Karzai, ele passou a abrigar também funcionários públicos cujo salário, estima-se, não seria suficiente para comprar nem um dos muitos lustres de cristal que pendem das varandas das casas – repletas de vidros verdes espelhados e outros itens de decoração compatíveis com a fineza atribuída aos seus moradores. Um dos poucos sinais de que os rumos do Afeganistão podem mudar um dia é um ainda incipiente, porém crescente, interesse dos jovens pela política, motivado em parte por uma campanha lançada por organizações não governamentais em 2009. A corredora Robina Jalali está entre esses jovens. Aos 25 anos, ela foi a primeira atleta afegã a participar de uma Olimpíada. De família rica (o pai, informou seu irmão, trabalha com exportação), ela ouve Shakira e Jennifer Lopez, veste roupas compradas em Dubai e conhece mais de vinte países. Cursa ciências políticas na Universidade de Karwan e já está em campanha para concorrer a uma vaga no Parlamento. "Quero que o Afeganistão se orgulhe de mim, mas também quero me orgulhar dele", diz."


E, vendo-a Jesus, chamou-a a si, e disse-lhe:
Mulher, estás livre da tua enfermidade. Lucas 13:12



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